JULGAMENTO E MORTE DO GALO DO
ENTRUDO
Guarda | 2013
TEXTO
Personagens
- Galo do Entrudo
- Zé Povinho (Juiz)
-
Viriato Herminium
(Acusação)
-Fábio Máximo
Serviliano (pretor, governador da província romana
Ulterior; defesa)
- Jornalista/apresentador
-
Repórter
-
Beatas
-
Rapariga jovem
-
Populares / Figurantes
*****
Parte I – Desfile até à Praça Velha
(No decorrer do
percurso até à Praça Velha vão surgindo, de entre a multidão, ou vindas de ruas
transversais – e de acordo com as opções do encenador – personagens que
(gritando) ora vão lançando impropérios contra o Galo, ora vão proferindo
lamentações. No ecrã existente no Jardim José de Lemos, e nos ecrãs da Praça Velha,
vão passando imagens de galinhas em alvoroço, procurando dar a ideia de que vão
assistir ao julgamento).
-
Malandro, és um malandro que só nos tens roubado!
Mafioso!
Mafioso!
-
Ai coitadinho, pobre galinho! Só têm inveja
de ti! Tu vais vencer!
Coragem galinho do meu coração.
-
Olha o ordinário, nem a caminho do julgamento baixas essa crista!
Ladrão! Ladrão!
-
Qual ladrão, qual carapuça! Galos assim é que
precisávamos em maior número! Força, amigo! Mostra-lhes a tua fibra de
galináceo!
-
O que tu mereces é que te cortem esse pescoço,
presunçoso de um raio! Vigarista!!
-
Só espero
que se faça justiça!! Que sejas bem julgado e bem condenado! Ladrão! Ladrão!
(Nas
escadas da Igreja da Misericórdia um grupo de beatas, vestidas de negro, irrompe em lamentos e
exagerada gritaria).
Beata 1 -
Ai Galo da nossa alma! Perdoa a estas reles criaturas que não sabem o que
dizem!
Beata 2 - Invejosos
é o que eles são! Têm inveja desse teu porte altivo e, e… (gaguejando) sedutor…
Beata 3 -
Será que esta gentinha toda não tinha mais nada para fazer hoje? Não têm casa
para arrumar, nem mulheres ou homens para cuidar?
(Prosseguem
com gritos de desespero e gesticulando de forma descontrolada, seguindo, depois
o cortejo em direcção à Praça Velha, onde vão, ainda, intervir antes do
julgamento)
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Parte II – Julgamento
(Praça Velha. Estão
presentes: o acusado, a acusação, defesa e figurantes. No ecrã, após terminarem
as imagens com galinhas a correr, fica, durante algum tempo, a imagem do Galo.
Surge, depois, um genérico com a indicação TV
GUARDA | Informação; apresentador começa a ler as notícias)
Jornalista
(com ar desajeitado e vestuário que deve suscitar risos por parte dos espectadores).
Na Guarda terá início, dentro de instantes, aquele que
é considerado o julgamento do ano.
O conhecido Galo do Entrudo é acusado de vários
crimes, praticados, sobretudo, ao longo de 2012.
Vamos estabelecer um primeiro contacto com a nossa
equipa de reportagem que se encontra em pleno centro da cidade. Chamamos a
repórter Lisete Carnavalesca.
Repórter
(Veste
roupa com cores fortes; vai, de quando em vez, afastando o cabelo dos olhos,
numa atitude exibicionista).
Boa noite José Festas, estamos em directo da mais alta
cidade de Portugal, concretamente da conhecida e turística Praça Velha, que na
toponímia guardense figura como Praça Luis de Camões.
Este julgamento é aguardado com grande expectativa e
seguido aqui, no local da audiência, por largos milhares de pessoas.
É, de facto, um número impressionante, para alegria do
sector hoteleiro e da restauração. A procura de quartos e a reserva de
restaurantes disparou nestes dias que antecederam o julgamento.
Posso adiantar que a necessidade de facultar melhores
condições para as pessoas seguirem localmente este julgamento obrigou à mudança da estátua de D. Sancho I, para
junto da Sé Catedral.
Uma decisão que, segundo apurámos, motivou a
contestação de vários sectores populacionais, circulando já uma petição para
ser reposicionado o monarca no local onde estava anteriormente.
Mas voltando ao julgamento, posso dizer que o
interesse das pessoas é enorme.
Vamos junto dos presentes registar algumas opiniões.
(A repórter dirige-se para um dos lados do palco e
fala com uma pessoa, figurante previamente referenciada, pelo encenador, para
estar no local).
Repórter
Boa noite, o que acha deste julgamento?
Figurante 1
(Figurante, com traje regional
e sotaque marcadamente beirão)
Olhe menina, acho muito bem. E já agora deixe-me
mandar um beijinho para a minha irmã, no Luxemburgo e, e…
Repórter
(interrompendo-o)
Obrigada pelo seu testemunho; passamos agora para
outro senhor, que está aqui para assistir ao julgamento. Boa noite, qual a sua
opinião sobre as acusações feitas ao Galo do Entrudo?
Figurante 2
(denotando um ar enfadado e pouca simpatia
pela repórter)
O que
a senhora quer, sei eu! Em vez de estar aqui a falar de coisas negativas, devia
era preocupar-se com os valores da nossa cidade! Entende?
(O tom exaltado vai subindo)
Porque não fala da nossa Sé Catedral? Porque não fala
do nosso Teatro Municipal? E do nosso ar puro? Do nosso Centro Cultural? E das
morcelas da Guarda? E dos nossos
poetas? E dos nossos cientistas? E dos nossos actores?
Só sabem falar daquilo que é negativo! Mas que raio de
informação é esta? Claro que para dar tempo de antena aos galos criminosos e
aos filhos da puta...
Repórter
(interrompendo as declarações)
Muito obrigada. Como estávamos dizendo, o início do
julgamento é aguardado por enorme multidão, curiosa por saber qual será a sentença...
(Recebe um papel, dando
a entender que leu rapidamente o que ali está escrito)
Acabamos de
receber uma informação, de última hora, segundo a qual o magistrado designado
para este julgamento terá antecipado a reforma e não vai comparecer. Recorde-se
que este magistrado tinha feito comentários críticos contra a reorganização da rede judicial
e outras decisões do Governo,
nesta matéria.
Vamos tentar obter esclarecimentos sobre o que se vai
passar, saber se o julgamento será
realizado, em função desta inesperada notícia.
Voltaremos de novo ao teu contacto, José Festas.
(No ecrã, sem som,
aparece o jornalista, desaparecendo a imagem e surgindo as seguintes palavras: PEDIMOS
DESCULPA POR ESTA INTERRUPÇÃO, O PROGRAMA SEGUE DENTRO DE MOMENTOS.
Os
elementos da acusação e defesa manifestam desagrado. Ouvem- se dez badaladas,
enquanto os personagens vão gesticulando e mostrando sinais de grande
irritação.
As beatas
que estavam anteriormente junto à Igreja da Misericórdia,
vão comentando algumas das presenças)
Beata 1
Olha, ali
aquele não é o Valente? … Já não o via desde a fogueira de Natal…Parece que
quer ser deputado, quando sair da Câmara…isto foi o que me disse a Guilhermina…Olha (acrescenta, apontando), também está ali o
Bento... ali, ali!
Beata 2
Ai, a mim parece-me que está além aquela senhora que
manda na Justiça...e o Macedo, o dos polícias!... Eu gostava era de ver cá a
Assunção, até tinha lá em casa umas hortaliças fresquinhas para lhe
oferecer...mas agora não pode…tem de se cuidar…
Olha, mana, e os candidatos à Câmara, ali estão eles…
ai são tão bonitos, não achas? ... (Sorrisos,
contidos). Aparecem sempre que há povo por perto; e lá andam com os
resultados das sondagens debaixo do braço… (risos)
Beata 3
Até os
nossos deputados vieram… é tão raro vê-los por cá…ou então sou eu que não tenho tido
conhecimento da sua actividade…(Risos) Eu
até pensei que eles se tinham reformado...deve ser um trabalho cansativo.
Beata 1
Oh mana, não
sejas injusta, antes das eleições eles aparecem sempre…(Risos). São políticos! Lá está a televisão a dar de novo, cala- te!...
(Incide a luz sobre a repórter,
que aparece no ecrã. Começa a falar)
De novo em directo da Guarda, onde o julgamento da
morte do Galo do Entrudo vai mesmo
realizar-se, depois do contratempo, há pouco anunciado. Segundo as informações que conseguimos recolher, foi indicado outro magistrado.
(Escuta-se a sirene de
um carro da polícia que avança em direcção ao palco. Sai, do seu interior, o Zé
Povinho que sobe para o palco e se dirige à cadeira destinada ao Juiz)
Juiz - Zé Povinho
(Entra em
palco, com um andar bamboleante; toga e largo dossiê numa mão e garrafão de
vinho na outra. Olha, pausadamente, a assistência; senta-se, simula que está a
consultar a pasta do processo. Depois, bate com o martelo na mesa e dirige a
palavra à assistência)
Boa noite. Peço desculpa à acusação, defesa e ilustre
assistência, por este atraso.
Estava com a
minha Maria, tentar seguir, ao calor da lareira, um discurso do Gaspar quando
fui convocado, inesperadamente para este julgamento.
E como nunca deixo de responder à chamada da
justiça…eu disse à chamada da justiça e não chamada justiça… que fique em acta!
(aponta para um hipotético escrivão), aqui
estou com todo o prazer e algum entusiasmo gastronómico, diga-se de passagem.
Ainda passei pelo Hotel de Turismo, onde sempre gostei
de pernoitar e qual não foi o meu espanto ao ver que está encerrado! Encerrado,
vejam lá!... Não lembra nem ao Galo encerrar um edifício tão bonito e onde eu
já fui feliz… Tratem de arranjar uma solução e reabram o hotel.
(A defesa
gesticula, e aponta para o Zé Povinho, denotando discordância pelo juiz
nomeado. Este dá conta disso e reage, de sobrolho carregado)
Meu ilustre senhor, não vejo qual o motivo da sua
preocupação! Embora eu não tenha andado lá pelas Independências, Modernas,
Internacionais ou afins, não quer dizer que não tenha experiência em julgar.
Sim, porque todos os dias julgo! Julgo que estou num país
justo! Julgo que a crise vai acabar!
Julgo que não vai haver mais aumentos de impostos!
Julgo que todos são honestos!
Julgo que os políticos
querem servir o povo!
Julgo que não há compadrios!
Julgo que não há burlões!
Julgo que a competência é preferida à mediocridade!
Julgo que as promessas são para cumprir!
Julgo que quando se pede para apertarmos o cinto todos o fazem!
Ora bem, se julgo desta maneira, não há dúvidas que
tenho a necessária equivalência e idoneidade para estar aqui a resolver este
processo judicial relativo
ao Galo do Entrudo.
Nem preciso de recorrer ao Tratado de Bolonha.
Ou não lhe parece?... Estamos entendidos?...
(O advogado
de defesa manifesta concordância e fica quieto, olhando juiz)
Posto isto, minhas senhoras e meus senhores, estimadas
meninas, estimados meninos, vamos dar início ao julgamento.
Agradeço o
máximo silêncio, solicito que desliguem os vossos telemóveis e previno os
presentes que não admitirei considerações despropositadas neste Tribunal.
Quero manifestar uma palavra de muita estima a Sua Majestade
El- Rei D. Sancho I, que nos honra com a sua presença, nesta magnífica praça (diz
em tom reverente, para depois prosseguir a sua intervenção inicial)
Estamos aqui, como é do domínio público, para julgar o
Galo do Entrudo. A ave, ali presente, é acusada de vários crimes:
(Folheia o dossiê).
Burla, abuso de poder, peculato, falsificação de
documentos, corrupção activa e passiva, atentado ao pudor e à moral, violação
de privacidade, espionagem, incitamento à desordem pública, violação do segredo
de justiça, condução perigosa, fuga aos impostos...
Pergunto ao arguido: tem alguma coisa a dizer em sua defesa?
(O Juiz fica a olhar para o Galo que não responde…)
Bem, já vi que opta pelo silêncio. Está no seu direito. (Abre o garrafão e enche um copo de vinho,
saboreando um trago). É para aquecer a alma…e a noite está fria!..
Passemos então a escutar
as alegações da acusação.
Tenha a
bondade, senhor procurador Viriato Herminius, a quem saúdo de forma muito
especial e calorosa! Sempre admirei a sua personalidade e os seus actos
heróicos.
Viriato Herminius
(acusação)
Agradecido, Meretíssimo Juiz,
Cumpre-me, nestas alegações finais, reforçar os
fundamentos da acusação sustentada nos autos.
O arguido, como ficou provado, é o responsável por uma
série de crimes, não só cometidos no presente mas também no passado, e agora
factual e documentalmente comprovados.
Não esqueçamos que foi este vil galináceo que
facilitou a vinda da barbárie estrangeira, a imposição do jugo financeiro e o roubo descarado das nossas gentes, os cortes nos
ordenados, os cortes nas reformas, a chaga do desemprego.
Tem obrigado milhares de pessoas à sobrevivência nos
campos, nas serranias desta região ou além fronteiras ...
Os povos lusitanos, que partilharam, comigo, o esforço
da guerra e sentiram na carne e na pele os atropelos dos estrangeiros –
sedentos de dinheiro – conheceram muito bem as consequências dos actos
interesseiros deste Galo.
Ele tem aquela imagem de pessoa honrada, usa sempre
bela e garrida indumentária mas esconde um coração negro, de pedra, que nem os deuses mais condescendentes
poderiam ignorar.
É este Galo,
que se banqueteou com os invasores, e usufruiu das suas benesses, o responsável
pelo esquecimento da nossa língua e da nossa cultura, incentivando a destruição
dessa identidade, alinhado com despropositados acordos ortográficos.
Salvou-se, para conhecimento das gerações de hoje, a
nossa inscrição no Cabeço das Fráguas, aqui bem perto deste local; sítio que
visitei há uns meses atrás…com muita saudade e pesar pelos meus companheiros já
falecidos!
O Cabeço das Fráguas é, posso afirmar sem qualquer
dúvida, um local de culto, de invocação patriótica.
E durante muito tempo, este galo maldito fez tudo para
que esse sítio permanecesse no esquecimento; sim, porque é símbolo de
resistência, de afirmação do nosso destino e das nossas vidas; terra regada pelo
sangue dos nossos irmãos que não quiseram vergar a cerviz.
Até as Fráguas, pasme-se, quase foram invadidas por
essas torres brancas que fazem lembrar os estandartes imperiais romanos quando
espezinharam a nossa terra.
Este Galo, uma vez mais, foi cúmplice…ele está sempre presente
nos piores momentos do nosso povo, zombando da desgraça e contando as
moedas ganhas com esses negócios...
Fábio Máximo Serviliano (interrompendo-o)
Protesto, Meretíssimo Juiz.
O procurador Viriato
é um exagerado e só diz blasfémias. Como se o arguido fosse o
monstro que ele quer fazer crer…
Viriato (responde furioso)
Oh romano desgraçado, tu, cruel carniceiro que
chacinaste os nossos povos, insultas a nossa memória e vens para aqui defender
este galo traidor, cobarde, um energúmeno da pior espécie?
Tem tento nessa língua, caso contrário ainda te
trespasso com a minha falcata, tal como o fiz a muitos dos teus legionários e dos exércitos de Máximo Emiliano! A mim não
me atemorizas!
Juiz (interrompendo-o)
Faça favor de moderar
a sua impulsividade.
(Sorri, apaziguador e denotando simpatia
por Viriato)
Guarde lá a sua falcata, há outras formas de matar,
não se esqueça do efeito devastador da carga fiscal ou das exigências e
relatórios do FMI, por exemplo,
…prossiga, prossiga!! Dá gosto ouvi-lo!!..
Viriato
Herminius
Perdão, Meretíssimo,
Um homem não consegue, por mais forte que seja, ficar
indiferente às lanças da hipocrisia, e à falta de carácter!
Estou aqui, neste Tribunal, para acusar o Galo do
Entrudo e exigir a sua condenação, que seja exemplar para outros galináceos
interesseiros, corruptos, traiçoeiros, traidores, avarentos.
Galináceos que não querem saber da pobreza das
capoeiras, do desemprego, da situação
dos idosos, da fome e da miséria,
do desespero, da morosidade e
eficácia da justiça, da falta de segurança, da
moralidade, da honra!
Este galo intrometido não descansou enquanto não viu aumentados os impostos, afastando os
nossos filhos e até mesmo esse Asterix Depardieu que escolheu quem melhor lhe
guardou a pesada bolsa.
E ele não podia ter sido uma mais-valia para as nossas depauperadas carteiras? Claro que podia
mas este Galo, mais uma vez, meteu o bico e afastou esse gordo investidor para
terras russas.
Este Galo
vaidoso interferiu na planificação das verbas destinadas à ULS da Guarda,
criando sucessivos entraves, reformulando calendarizações, criando intrigas,
revelando assuntos reservados nas páginas dos jornais, falando para as
televisões e andando pela calada da noite a desmotivar profissionais que
queriam vir para esta cidade.
Convenceu muitos a deixarem a Guarda, contribuindo
para a sua crescente desertificação! Como se esta cidade não precisasse de
gente dinâmica, empreendedora, ousada!
Criticou violentamente, sob a capa de um pretenso
anonimato, todos quantos apresentaram projectos, ideias, soluções, propostas
inovadoras, parando apenas quando ostracizou essas pessoas!
Digam-me, minhas senhoras
e meus senhores, se isto não é grave? É gravíssimo!
E que dizer das onerosas e ruinosas portagens nas
SCUTS que têm obrigado milhares de pessoas a recorrerem às estradas do passado?
Quem é o grande culpado? O Galo, senhores, o Galo! Este Galo do Entrudo
que está ali de crista bem erguida.
(Vira-se
para a assistência, como que solicitando o seu apoio para a argumentação
apresentada)
Digam-me se isto não merece uma exemplar condenação?
E como se
isso não bastasse tem feito as mais despropositadas intervenções sobre Cultura.
Ele, um pretensioso do tamanho desta granítica Sé Catedral, que nunca foi visto
numa exposição, num espectáculo, numa tertúlia, numa conferência…
Contudo, esgravata, diariamente, nas redes sociais, os
mais repugnantes comentários. Autêntico terrorismo psicológico que tem afastado
gente séria, válida, competente, abrindo portas aos arrivistas.
(Faz uma
breve pausa, com o braço e o dedo apontado para o galo, para prosseguir com a
mesma exaltação as suas acusações)
Este miserável galo, que sempre se arvorou um grande
cantador e um apreciador das belas melodias, tem-se mostrado contra o nosso
folclore, deixando entender, nos seus frequentes deslizes, que as letras das
canções preferidas andam sempre à volta dos progenitores das crianças, dos
“marmelinhos de fora” ou do cheiro a bacalhau!
(Fica por
breves segundos em silêncio, varrendo a multidão com o olhar)
E para vos avivar a memória, eu pergunto: quem esteve
por detrás dos brutais aumentos no IVA, mormente na restauração?
Quem procurou
retirar dos cardápios o frango de churrasco e o arroz de cabidela? Claro que
quanto ao arroz de pato tudo ficou na mesma, pois estamos a falar de outro clã
de aves domésticas, inferiores na perspectiva deste galo racista.
Meretíssimo Juiz,
Este Galo não tem qualquer compaixão pela gente
trabalhadora, sobrecarregada de impostos e lutando, no dia-a-dia pela
sobrevivência.
Este Galo veio para a praça pública pedir a redução
nas despesas mas continua a esbanjar ostensivamente – em locais de luxo,
perdição e vício – o dinheiro dos nossos impostos.
Perante tudo isto, peço a condenação deste vil galináceo!
Juiz Zé Povinho
Muito bem, senhor Procurador Viriato. Brilhante
intervenção, que me deixou com uma secura na garganta. E estas considerações
com evocação a galo despertam-me o prazer da bebida.
(Enche o copo de vinho, bebendo-o de imediato)
Tem agora a palavra, para as alegações
finais o pretor Fábio Máximo Serviliano, governador da província
romana Ulterior. Seja rápido! Que o tempo urge!...
Fábio Máximo
Serviliano (Defesa)
As minhas saudações, Meretíssimo Juiz.
Procurarei ser rápido e utilizarei apenas o tempo
suficiente para desmontar esta cabala urdida contra o meu constituinte.
Começo por dizer que ao longo da minha carreira
militar e governativa nunca assisti a uma acusação sustentada com fundamentos
tão frágeis e caricatos.
Percorri já a maior parte do território imperial e não
tive conhecimento de caso semelhante; transformarem um galo em bode...
expiatório; uma simpática e cantadora criatura em lobo mau.
Este Galo, culto, perspicaz, entendeu, desde as primeiras
horas em que pisei esta terra, a oferta civilizacional de Roma; não nos recebeu
como invasores mas como amigos, de asas bem abertas.
Entendeu o nosso apoio aos povos desta região como
dádiva desinteressada, atitude fraterna com a bênção de todas as divindades;
aplicou, em seu favor, os dinheiros recebidos da cidade eterna, percebendo que
um dia seria tempo de galinhas magras...
Festejou as
nossas conquistas, esteve sempre com os vencedores, escolheu sempre o lado
certo, soube aproveitar os rumos do destino. Sinal de inteligência e sentido de oportunidade (diz enfatizando esta última palavra)
É acusado de não ter cumprido os contratos de
empréstimo de moeda e aproveitando em seu favor a res publica ? Injustiça! Então não conseguem ver que foi o seu
instinto nato a funcionar, prevendo a situação económica em que a Lusitânia ia
cair!
Acautelou esses valores, e bem, certamente junto de
amigos que sabem zelar por esses interesses, triplicando os rendimentos
pessoais, a pensar, certamente na criação de empregos e riqueza!
Teve aquilo que vocês hoje denominam visão empresarial
e compreendeu, muito antes, o impacto da romanização, hoje dita globalização.
Mesmo assim, como bem sabeis, aquele que vedes ali, de
cabeça erguida, embora com olhar triste, (aponta
para o Galo) cumpre escrupulosamente as suas obrigações, vive o seu
dia-a-dia com as normais dificuldades e recorrendo mesmo ao auxílio dos pais...
Trabalhador diligente, tem procurado aumentar as suas
qualificações académicas, sempre em total respeito pela legalidade e
indiferente ao cantar de outros galarós; invejosos, diga-se, que não têm as
suas capacidades cognitivas e precisam de muitos mais anos para dominarem as
matérias.
A ele bastou-lhe visitar Bracara Augusta, Aeminium,
Egitania, Civitas Aravorum, Conímbriga, a estação arqueológica do Mileu, Roma e
Bolonha para ficar impregnado da sabedoria e com a auréola dos predestinados para governar!
(Faz um gesto, exagerado, com os braços).
E para o desempenho de cargos de eleição nem precisou
daquilo a que agora se designa por sondagens para saber que foi sempre o Galo
preferido, o mais elegante, o mais desejado, o mais influente. Aquilo que se
costuma dizer: o galo certo para o poleiro!
Meritíssimo, estimado povo aqui presente, e ausente;
amados galos, galinhas e
pintainhos!...
(eleva os braços e fica como que em êxtase, por breves segundos) Será isto motivo para
condenarmos o Galo do Entrudo?
Evidentemente que não; por isso mesmo, quando
avisado pelos fiéis mensageiros, deixei o nobre ambiente do Palatino e vim
cavalgando para aqui, sem animal de ostentação.
Considero que não é desonra nenhuma vir no meu cavalo
Clio e não nesses muares da estrelinha ou com símbolo azul e branco nos arreios.
Nem nunca ouvi nenhum dos nossos Senadores a discordar
desta opção. E se há pessoas que têm os cofres cheios são eles!... Ai se são, e
mordomias, muitas mordomias...
Até porque nós temos o nosso cavalinho criado em
Maranello; um animal sempre fogoso e possante, seja qual fora a cor...
É certo que
pela Lusitânia há gente que pensa de outra forma mas declaro que estou em total
oposição; sobretudo quando utilizam o Fórum
para expressarem essas ideias indignas da pax
romana e da democracia.
Meretíssimo,
Por Júpiter que não entendo as horríveis acusações de
que é alvo este nobre Galo do Entrudo! Assim como posso deixar de repudiar a
demagogia expressa pelo procurador Viariato Herminius, com que me confrontei
várias vezes no campo de batalha.
Ele sentiu
o peso do meu gládio sobre o seu escudo!
Viriato (avançando, alguns passos
e respondendo exaltado)
Escorraçámos-te da nossa terra, a ti e a quantos nos
queriam fazer viver, eternamente, dependentes das vossas migalhas financeiras,
das vossas regras autoritárias! Não esqueças isso, romano!
Fábio Máximo Serviliano
Claro que não esqueço, lusitano. Por mais de uma vez
te empurrei para as Fráguas.
Tiveste os teus momentos de glória, mas nunca tiveste
este nobre Galo (aponta para o mesmo) do
teu lado. Tiveste galinhas e pintos traidores, ou não te lembras de Áudax,
Ditalco e Minuro?
E até os
pintos, sobretudo os da costa, te trouxeram a infelicidade. Foste companhia de
lagartos desgostosos, e sentiste o olhar das águias dos nossos estandartes.
É fácil, bom povo da Guarda e do mundo, ver o quadro
de inveja que sobressai das acusações
contra o Galo do Entrudo.
A inveja é, de facto, um sentimento repugnante que
corrói a sociedade, destrói amizades, fomenta a intriga, inviabiliza a
cooperação, alarga o pântano dos medíocres.
Viriato (furioso)
Tu queres ser agora um moralista! Tu conhecido por um
dos maiores demagogos?...
Fábio Máximo
Serviliano (com ironia)
Meretíssimo, infelizmente há quem não consiga ouvir a voz da razão e as verdades. Este galo é,
reconheçamo-lo, um animal de fino trato e de predisposições genéticas para
conquistar o coração dos povos
Viriato (interrompendo-o de novo)
Nisso tens
razão! Conquistou o coração do povo para o esfaquear e distribuir como iguaria
aos oportunistas e vigaristas da sua laia, dentro e fora do nosso território!
Serviu-se do povo, abusou da sua bondade e da sua generosidade.
Fábio Máximo Serviliano
Meretíssimo, a acusação está a quebrar o meu elevado e
malicioso, perdão, cuidadoso (procura
emendar, com a maior convicção possível) raciocínio! Protesto...
Zé Povinho
Protesto aceite, porra! E veja lá se termina também
com as suas alegações. Já estou a perder a minha paciência! O tempo urge e não
temos a noite inteira para estar aqui !!
Prossiga, prossiga sem delongas !! (grita, furioso).
Mas antes disso (diz
num tom de voz firme mas muito mais suave) apenas uma ligeira observação
para quem está a tirar fotografias aí debaixo. Procurem apanhar o meu melhor
perfil, pois vou requisitá-las para meter no meu facebook...(levanta a cabeça e roda-a para a esquerda e
para a direita).
Prossiga então, prossiga então! (diz, dirigindo-se ao advogado de defesa, e de novo num tom de
impaciência )
Fábio Máximo
Serviliano
Com a devida vénia,
Meretíssimo e benevolente Juiz!!
Zé Povinho
Benevolente o carago!!
(diz, furioso, erguendo-se da cadeira).
Tento nessa língua governador Fábio Serviliano, ou
ainda o ponho a ferros.
O Senhor não está no Senado, está no mais alto
tribunal deste país, tão alto que até está à altura de analisar as questões de inconstitucionalidade.
Que fique em acta esta tentativa de pressão, por parte da defesa
(aponta para o escrivão).
Fábio Máximo Serviliano
Longe de mim, Meretíssimo, qualquer ideia de
pressionar este Tribunal. Apenas solicito justiça para este galo e dou por
terminadas as minhas alegações finais.
Peço a absolvição do Galo do
Entrudo.
Juiz Zé Povinho
Muito bem, finalmente vamos prosseguir (faz uma pausa e enche o copo, de vinho. Bebe um trago, saboreando a
bebida)
Rapariga/figurante
(vestida
provocadoramente, seios volumosos, maquilhagem exagerada; faz parte da
assistência; levanta-se e grita, histérica).
Este chavalito amoroso com que eu confidenciei os meus
mais íntimos segredos está a ser alvo de uma grande cabala. Olhem para aquele
olhar ternurento…
(Prossegue com ar lânguido e bamboleando o corpo)
Oh Juiz bacano, se te pudesse dar uma palavrinha, em privado…
(diz em tom sensual e insinuante)
Juiz (batendo violentamente com o copo na mesa, limpando a
boca com o antebraço, e reagindo com voz autoritária e irritada)
Advirto-a que eu não cedo a pressões de comentadores
ou dirigentes políticos, quanto mais da menina! Cale-se, de imediato, caso
contrário é expulsa desta praça e enviada já para a Casa dos Degredos!
Estes bons cidadãos que aqui se encontram querem um
julgamento rápido e justo, e recompor o estômago depois desta prolongada
sessão! E eu não tenho direito a
horas extraordinárias.
Pergunto,
de novo, ao arguido se pretende alegar alguma coisa em sua defesa?
(Perante a ausência de resposta, prossegue).
Está no seu direito em não dizer nada; assim não se
compromete mais do que está.
Passemos então à sentença.
Agradeço silêncio, na praça!
(Enche o
copo. Afina a garganta. Lança um olhar vagaroso pela assistência).
Considerando o que foi pormenorizadamente descrito
nos autos;
Fundamentando-nos na prova carreada para este processo
e nos testemunhos ouvidos nas sessões anteriores;
Ouvidas as alegações finais
por parte da acusação e da defesa;
Tendo presente o estipulado nos artigos 35º, 98º,
112º, nomeadamente nos números 2º, 4º, 22º e 23º do Código dos Deveres e
Direitos dos Galináceos, que se dão aqui por reproduzidos;
Atendendo ao disposto nos artigos 30º e 31º da Lei
2012/12 de 21 de Fevereiro, que define o estatuto de Aves de Rapina, Capoeira e
Afins, e que aqui se transcreve a folhas 100 e seguintes;
Evocando o
decreto-lei 19233, do Ministério das Capoeiras, Explorações Rurais
e Urbanas, publicado no
trimensário Aves e Bicharada da República, a 1 de Abril de
2012, o qual estabelece os normativos da conduta de animais de criação;
(Faz uma
breve interrupção para encher e beber mais um copo de vinho)
Este Tribunal
considera que o arguido, aqui presente, conhecido por Galo do Entrudo, cometeu
um total de 56 crimes, aos quais é aplicada uma pena de cem anos em cúmulo
jurídico e ao abrigo da nova Lei Anti- Corrupção e Defesa do Erário Público,
convertida, face à tipologia e gravidade dos crimes, na pena de morte.
Neste quadro circunstancial e jurídico, e reproduzindo
os factos apresentados pelo digno Procurador Viriato Herminius, condenamos o
Galo do Entrudo a morrer pelo fogo!
O Galo é ainda condenando a suportar as custas deste processo e as despesas
decorrentes da preparação de uma quente e divinal canja a servir aos presentes,
no final deste julgamento; a título de indemnização compensatória pelo tempo
que dedicaram a seguir este pleito.
Da presente
sentença não há cabimento para qualquer recurso.
Antes de execução, o acusado tem algum desejo
a expressar?
(Olha, com ar interrogativo para o Galo do Entrudo)
Galo do Entrudo
Sim Meretíssimo Juiz, apenas
algumas palavras.
Quebro o silêncio para dizer que fui injustamente
condenado; assumo que meu comportamento não foi exemplar mas a desproporção
entre os crimes cometidos e a pena aplicada é gritante, no meu caso direi cantante.
Contudo, se a expiação das minhas culpas contribuir,
de alguma forma, para o reencontro nacional
com a prosperidade e o bem-estar dos meus compatriotas, partirei
consolado, embora não convencido.
Já que me foi dada a possibilidade de pedir um desejo,
na ponta do bico tenho a vontade de… morrer de velhice!
Como da vossa douta sentença não há apelo nem agravo,
sempre lhe direi que gostaria de deixar esta vida terrena, tão madrasta para mim, enlevado no lirismo de uma bela
ópera... subindo, subindo nos céus, no espaço e chegar até junto dos satélites
mais longínquos…onde gostaria de ficar empoleirado para todo o sempre.
Tive, desde pintainho, inexplicavelmente, um gosto
enorme por ópera e satélites, pela magia do espaço infinito…e imaginei, há muito, os
minutos finais
da minha presença na terra escutando Pavarotti…seria, de facto, uma graça
suprema…
(Começa a ouvir-se parte de uma ópera. No local
definido pelo encenador surge a personagem surpresa do espectáculo)
Galo do
Entrudo (terminado
o trecho da ópera e saindo o personagem)
Oh que sons celestiais…estou nas nuvens, posso morrer
feliz! Um Galo como eu não podia ter melhor despedida de uma sociedade onde foi
incompreendido e vilipendiado; sim, porque nestas coisas da política e do poder, rei morto, rei posto...foi
sempre assim, ao longo do tempo.
Juiz Zé Povinho (interrompendo-o)
Oh galaró, já chega
de considerações e divagações!
Concedo-te mais alguns minutos para divulgares,
publicamente, o teu testamento.
Certamente que
haverá muitos interessados e interessadas nos teus pertences e valores
patrimoniais.
PARTE III - TESTAMENTO DO GALO
Aos 11
dias do mês de Fevereiro de 2013, eu, Galo do Entrudo, em pleno uso das minhas
faculdades físicas e mentais, esgravato o meu testamento do qual deixo cópia,
autenticada, ao meu ilustre advogado.
Uma vez que não possuo herdeiros directos, e a minha alma
se repartiu por todo o mundo, peço que sejam escrupulosos no cumprimento das
minhas derradeiras vontades e na salvaguarda do meu espólio.
O meu canto melodioso, e sonoro, deixo-o ao Presidente
para assegurar algum entusiasmo nas suas intervenções públicas e políticas, sem
espirais recessivas.
A minha velha candeia de azeite, prenda estimada da
minha trisavó, deixo-a ao nosso
primeiro, para a colocar ao fundo do túnel, onde a luz já
foi cortada por falta de pagamento à EDP.
Ao Gaspar deixo a minha antiga máquina de calcular, a
que falta a tecla mais, para o auxiliar na definição dos impostos e duodécimos.
Os meus diplomas devem ser entregues ao Miguel, para
evitar que o continuem a mandar
estudar, por tudo e por nada, ou a questionarem equivalências.
O meu doutoramento honoris
causa, atribuído pela Universitas
Gallum, deixo-o ao José, empenhado estudante em terras de França.
Ao Ministério da Saúde entrego
as penas das minhas asas, cujo valor da venda – em leilão – deverá
reverter para a terceira fase das obras do Hospital desta cidade; assim se
perpetuará a memória do antigo Sanatório.
O meu estômago saudável, e que nunca me causou nenhuma
aflição, deixo-o ao amigo Paulo, companheiro de tantas feiras, para melhor
digerir os sobressaltos da coligação.
À Ângela vou doar as penas do meu pescoço, garridas e
multicolores, para um melhor equilíbrio da sua acentuada imagem germânica e
toque de glamour no seu vestuário.
Os meus belos olhos, de largo alcance, deixo-os à
Senhora Lagarde para ver que este país não é habitado por números e construído
sobre estatísticas.
A minha colecção de réplicas da popular gárgula da Sé,
virada para nascente, deverá ser distribuída pelos técnicos da Troika, para testemunhar
a nossa “estima” pelo seu desempenho.
A minha efígie em alva
porcelana deverá ser entregue ao
presidente Obama.
O meu bico luzidio, que tanta inveja causou, deixo-o
ao Seguro para utilizar da forma que lhe aprouver nas lides partidárias e no
congresso que se avizinha.
A minha crista vermelha, símbolo do meu querido
património, deixo-a como recordação ao camarada Jerónimo.
Os ovos
das minhas melhores poedeiras devem ser distribuídos pelos grupos
parlamentares, aconselhando a sua utilização na confecção de energéticas
gemadas, que estimulem o seu trabalho e maior atenção à realidade do povo.
A penugem do meu peito ofereço-a para a sede da AREE,
Associação dos Autarcas Reformados em Exercício.
O meu invejado cérebro deixo-o para transformação em
comprimidos e repartição equitativa a quantos, a todo o custo, anseiam ocupar
cargos de nomeação política, na esperança que perdure, através deles, a minha
preclara visão de estratega.
Da minha vasta biblioteca, deixo ao PSD da Guarda o
“Manual de como escolher Candidatos Vencedores”, na certeza de um modesto
contributo para a concretização dos seus anseios.
Ao PS da Guarda ofereço o meu livro intitulado “A
Igreja e a Beatificação à luz da Alba Plena”, com o desejo de uma iluminação
dos espíritos santos, dos valentes, dos desavindos e dos que virão.
A separata da minha apreciada conferência “Como
interpretar as declarações políticas”, feita em várias academias e agremiações literárias, na minha qualidade de
consultor da ONU, deixo-o aos preclaros
comentadores da nossa praça.
Os espaços envidraçados junto à muralha medieval, na
Avenida dos Bombeiros, deixo-os ao grupo de empresários que se comprometer a
criar ali uma grill zone, com as mais
esbeltas galinhas da região. Fica ali garantido um espaço para ser instalado um
Observatório da Reforma do Estado. E muito se pode observar dali (riso abafado, irónico).
Os
terrenos que possuo na Rua do Volta Atrás, junto ao Cruzamento da Avenida de S.
Nunca, entrego-os à PSP para a construção de um modelar e bem equipado quartel,
assegurando também, com os juros da minha conta na Suiça, as despesas com a
execução do projecto.
A estátua de bronze, erguida na minha capoeira, vou
doá-la à cidade, com a condição de ser colocada na recém-construída Rotunda da
Ti Jaquina, condignamente iluminada e difundindo música rap galinácea.
O meu álbum “As mais linda capoeiras da região” deixo-o
à guarda do Fotoclube, como incentivo a lindas fotografias de galináceos e
afins, desejando que prossigam com muitos e qualitativos registos, digitais ou analógicos.
Para a criação do prémio o “Galo do Ano”, aquando do
regresso definitivo aos mercados, deixo à futura associação de desenvolvimento
económico e industrial da Guarda os rendimentos da exploração do milho do meu Quintal das Galinhas Doidas.
A carne do meu peito deixo-a para confecção de um
quentinho manjar e os meus ossos entrego-os para a investigação das doenças
endógenas deste país.
A minha cabeça vou entregá-la para a pesquisa de um
antídoto para a assustadora “peste grisalha”. A entrega do Prémio Peixoto,
instituído pela minha capoeira, deverá ser feita ao cientista, português, que
primeiro consiga esse objectivo.
Os meus afectos deixo-os ao bom povo da Guarda que,
apesar da crise, nunca se enfadou com o meu belo cantar e teve
sempre um sorriso
simpático quando me via peneirar pelas ruas da cidade, fazendo companhia
a outros históricos galifões.
O meu
sangue entrego-o à juventude para que alimente o inconformismo e a esperança
num futuro melhor, onde se valorize a competência, o trabalho, o mérito.
O meu coração quero que fique guardado debaixo da
estátua de D. Sancho I, de forma a continuar a pulsar com a animação da Praça
Velha, das tradições académicas, das fogueiras de Natal, das passagens de ano,
dos grandes eventos desta minha cidade.
Assino este meu testamento, que valido com o meu sinete, aos onze
dias do segundo mês do ano da desgraça de dois mil e treze.
O Galo do Entrudo
PARTE IV
- FINAL
Juiz Zé Povinho
(dando três fortes marteladas na mesa)
Está cumprido o teu desejo e divulgado o teu testamento.
A noite vai já alta e a justiça
tem de ser, implacavelmente, aplicada.
Que as labaredas te iluminem e te arrebatem para longe de todos nós que festejaremos, já de seguida, a tua
partida.
(O juiz levanta-se e grita em direcção ao galo)
Para a fogueira, para a fogueira!!! …
(As chamas surgem e começam a envolver o galo. O juiz volta a
gritar de novo, num misto de histeria e envolvência etílica)
MORTE AO GALO DO ENTRUDO !!! MORTE AO GALO DO ENTRUDO !!!
(Gritaria, altercação entre acusação e defesa, cujos
elementos acabam por sair e desaparecer da vista da multidão. O Juiz permanece, de pé, com um copo numa mão e o garrafão
na outra, seguindo, entusiasmado a morte do galo e bamboleando o corpo ao som
da música).
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